Por Jânsen Leiros Jr.
Revisado
e ampliado em 09/05/2024
“Somos assim. Sonhamos o voo, mas
tememos as alturas. Para voar é preciso amar o vazio. Porque o voo só acontece
se houver o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Os
homens querem voar, mas temem o vazio. Não podem viver sem certezas. Por isso
trocam o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.
Os homens preferem as gaiolas ao
voo. São eles mesmos que constroem as gaiolas onde passarão as suas vidas”
Rubem
Alves em Religião
e Repressão
Até
hoje, em todos os grupos sociais que frequentei, não encontrei ninguém que
dissesse preferir prisão à liberdade. Ser livre é preferência universal. É
verdade. A liberdade, que já foi cantada em verso, prosa e samba enredo, sempre
esteve entre os mais pretendidos e legítimos anseios do ser humano. Já foi musa
de guerras. E por ela legiões intermináveis de pessoas já se sacrificaram. A
liberdade é um desejo natural de todo o indivíduo.
Há,
porém, armadilhas que volta e meia armamos contra nós mesmos. Elas nos prendem
em gaiolas construídas com as sutilezas do conforto,
num ambiente de certezas e seguranças que acreditamos ter alcançado,
a bem de nossa interminável busca por liberdade. Então o que era para ser um
grito de liberdade, torna-se o arfar por um cantinho seguro no fundo dessas
gaiolas. A incoerência é mesmo um traço latente em toda a humanidade. Ora, se o que cremos é o que vemos, como
esperaremos?[1]
Uma
das gaiolas históricas mais comuns são os dogmas, quando vistos, é claro, por
uma perspectiva restritiva ou inflexível. Eles podem e de fato limitam o
pensamento e restringem a liberdade de reflexão e questionamento. Assim como as
gaiolas representam a segurança das certezas estabelecidas, os dogmas podem
oferecer uma sensação de estabilidade e conforto para alguns, mas também podem
limitar a capacidade de crescimento espiritual e intelectual, impedindo a
exploração de novas ideias e perspectivas, ou mesmo de compreensão da verdade.
Essas
certezas e seguranças se manifestam no conjunto de verdades em que passamos a acreditar como absolutas e inegociáveis,
sem que aceitemos qualquer possibilidade de argumentação em contrário. São moldes que definem nossos pensamentos, e
que não nos permitem, sair de seus limites de forma alguma, sob pena de
cometermos sacrilégios intelectuais, desvios filosóficos ou pecados mortais. É por isso que
pensadores e filósofos, durante tanto tempo, foram demonizados pelo senso comum
em igrejas e grupos religiosos os mais variados, dado o perigo que representavam. Afinal, pensar fora das gaiolas
incentivarias seus pássaros a voarem ou ansiarem por liberdade.
Fazendo
e pensando o que tradicionalmente fizeram e pensaram nossos antecessores, os
riscos são sempre menores e os desconfortos são também reduzidos. Construímos
com zelo e cuidado a rotina de nossas almas, com o sossego de nossas
mediocridades previsíveis e seguras. Preferimos as gaiolas aos voos. E não falo
hipoteticamente. Esbarro com isso todos os dias em todos os grupos em que
tramito, quer sejam religiosos, políticos, econômicos e sociais. Sim, todos
caminham suas trilhas marcadas pelos viajantes da frente. Qualquer caminho
pensado, e falo apenas pensado e não necessariamente escolhido, é combatido,
morto e enterrado ainda no nascedouro. Não foi mesmo sem motivos a guerra travada
pela reforma.
Se
refletir sobre os dogmas judaicos da época de Jesus, defendidos com rigor por
fariseus e algumas outras seitas, percebemos que serviram como gaiolas que
impediram seus líderes religiosos de reconhecerem Jesus como o Messias prometido.
Jesus desafiou muitos daqueles dogmas e tradições estabelecidas, oferecendo uma
visão alternativa do Reino de Deus e de como as pessoas deveriam se relacionar
com Deus. Aqueles líderes religiosos estavam tão presos às suas interpretações
rígidas e literais das Escrituras e às suas próprias tradições e algumas
conveniências, que não conseguiram reconhecer Jesus como o Messias esperado.
Sua resistência em aceitar Jesus como o Cristo de Deus, pode ser vista como uma
consequência de estarem presos às gaiolas dos dogmas e tradições, que os
impediam de olhar para além de suas próprias expectativas e preconceitos. Ao
tentarem aprisionar o Senhor da Vida nas gaiolas dos dogmas, os líderes
religiosos acabaram por negar a própria essência da mensagem que Ele trazia,
que era de amor, graça e liberdade espiritual.
Ora,
seguranças e certezas não rimam com fé, nem tampouco a expressam. Mas sim esperança e convicção. Todos os exemplos bíblicos de fé, apresentam indivíduos
que saíram de suas confortáveis condições existenciais. De suas rotinas seguras
e de suas certezas convenientemente arraigadas. Abriram mão de suas garantias. Todos
se lançaram no vazio das incertezas,
tendo apenas a convicção e a esperança de que as gaiolas não eram e nem
poderiam ser seus destinos últimos. A única segurança e garantia que possuíam,
era a esperança de crer contra a esperança. Lançavam-se ao improvável, tendo
como garantia a fidelidade daquele que os impulsionava e que criam conduzi-los.
Antes
que alguém me acuse de dizer que ter fé é uma crença vazia, explico. Ao dizer
"vazio", expresso aquilo que não é visível, aquilo que não detenho,
que não me garante. O vazio do voo se sente e se percebe. Os olhos não
comprovam mas o corpo que nele se lança o reconhece e sabe que está ali. A convicção
o faz alçar o voo. Aliás, voo só pode ser feito no vazio. Não há como voar
através de espaços ocupados por qualquer coisa que possa ser vista ou tocada. A
fé não pode ser um espaço ocupado por qualquer coisa que, em lugar de
esperança, antes nos seja uma garantia. Mas alguém ainda argumentaria; mas o
Espírito não é o penhor, não é a garantia de nossa esperança. Certamente, mas
alguém vê o Espírito? Ele então é o nosso vazio em que nada vemos, mas em quem
somos plenos de convicção.
A
vida cristã não pode ser um emaranhado de certezas
e de seguranças concebidas para nos criarem
uma sensação de confortável letargia. Estamos o tempo todo sendo sacudidos para
fora dessas gaiolas. Enxotados. Para aprendermos a viver no vazio da fé, que se
fundamenta inegociável e incondicionalmente, apenas e tão somente, naquilo que
eu não vejo, mas que convictamente espero.
[1]
Romanos 8:24
Nessa analogia, Paulo
destaca a natureza da esperança cristã, que está firmemente baseada em algo que
não é visível ou tangível no momento presente, mas que é aguardado com
confiança e expectativa.