sábado, 30 de janeiro de 2016

Certezas e Segurança; a fé criada em gaiolas

Por Jânsen Leiros Jr.

Revisado e ampliado em 09/05/2024

 

“Somos assim. Sonhamos o voo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso amar o vazio. Porque o voo só acontece se houver o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Os homens querem voar, mas temem o vazio. Não podem viver sem certezas. Por isso trocam o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.

Os homens preferem as gaiolas ao voo. São eles mesmos que constroem as gaiolas onde passarão as suas vidas”

                      Rubem Alves em Religião e Repressão

 

Até hoje, em todos os grupos sociais que frequentei, não encontrei ninguém que dissesse preferir prisão à liberdade. Ser livre é preferência universal. É verdade. A liberdade, que já foi cantada em verso, prosa e samba enredo, sempre esteve entre os mais pretendidos e legítimos anseios do ser humano. Já foi musa de guerras. E por ela legiões intermináveis de pessoas já se sacrificaram. A liberdade é um desejo natural de todo o indivíduo.

Há, porém, armadilhas que volta e meia armamos contra nós mesmos. Elas nos prendem em gaiolas construídas com as sutilezas do conforto, num ambiente de certezas e seguranças que acreditamos ter alcançado, a bem de nossa interminável busca por liberdade. Então o que era para ser um grito de liberdade, torna-se o arfar por um cantinho seguro no fundo dessas gaiolas. A incoerência é mesmo um traço latente em toda a humanidade. Ora, se o que cremos é o que vemos, como esperaremos?[1]

Uma das gaiolas históricas mais comuns são os dogmas, quando vistos, é claro, por uma perspectiva restritiva ou inflexível. Eles podem e de fato limitam o pensamento e restringem a liberdade de reflexão e questionamento. Assim como as gaiolas representam a segurança das certezas estabelecidas, os dogmas podem oferecer uma sensação de estabilidade e conforto para alguns, mas também podem limitar a capacidade de crescimento espiritual e intelectual, impedindo a exploração de novas ideias e perspectivas, ou mesmo de compreensão da verdade.

Essas certezas e seguranças se manifestam no conjunto de verdades em que passamos a acreditar como absolutas e inegociáveis, sem que aceitemos qualquer possibilidade de argumentação em contrário. São moldes que definem nossos pensamentos, e que não nos permitem, sair de seus limites de forma alguma, sob pena de cometermos sacrilégios intelectuais, desvios filosóficos ou pecados mortais. É por isso que pensadores e filósofos, durante tanto tempo, foram demonizados pelo senso comum em igrejas e grupos religiosos os mais variados, dado o perigo que representavam. Afinal, pensar fora das gaiolas incentivarias seus pássaros a voarem ou ansiarem por liberdade.

Fazendo e pensando o que tradicionalmente fizeram e pensaram nossos antecessores, os riscos são sempre menores e os desconfortos são também reduzidos. Construímos com zelo e cuidado a rotina de nossas almas, com o sossego de nossas mediocridades previsíveis e seguras. Preferimos as gaiolas aos voos. E não falo hipoteticamente. Esbarro com isso todos os dias em todos os grupos em que tramito, quer sejam religiosos, políticos, econômicos e sociais. Sim, todos caminham suas trilhas marcadas pelos viajantes da frente. Qualquer caminho pensado, e falo apenas pensado e não necessariamente escolhido, é combatido, morto e enterrado ainda no nascedouro. Não foi mesmo sem motivos a guerra travada pela reforma.

Se refletir sobre os dogmas judaicos da época de Jesus, defendidos com rigor por fariseus e algumas outras seitas, percebemos que serviram como gaiolas que impediram seus líderes religiosos de reconhecerem Jesus como o Messias prometido. Jesus desafiou muitos daqueles dogmas e tradições estabelecidas, oferecendo uma visão alternativa do Reino de Deus e de como as pessoas deveriam se relacionar com Deus. Aqueles líderes religiosos estavam tão presos às suas interpretações rígidas e literais das Escrituras e às suas próprias tradições e algumas conveniências, que não conseguiram reconhecer Jesus como o Messias esperado. Sua resistência em aceitar Jesus como o Cristo de Deus, pode ser vista como uma consequência de estarem presos às gaiolas dos dogmas e tradições, que os impediam de olhar para além de suas próprias expectativas e preconceitos. Ao tentarem aprisionar o Senhor da Vida nas gaiolas dos dogmas, os líderes religiosos acabaram por negar a própria essência da mensagem que Ele trazia, que era de amor, graça e liberdade espiritual.

Ora, seguranças e certezas não rimam com fé, nem tampouco a expressam. Mas sim esperança e convicção. Todos os exemplos bíblicos de fé, apresentam indivíduos que saíram de suas confortáveis condições existenciais. De suas rotinas seguras e de suas certezas convenientemente arraigadas. Abriram mão de suas garantias. Todos se lançaram no vazio das incertezas, tendo apenas a convicção e a esperança de que as gaiolas não eram e nem poderiam ser seus destinos últimos. A única segurança e garantia que possuíam, era a esperança de crer contra a esperança. Lançavam-se ao improvável, tendo como garantia a fidelidade daquele que os impulsionava e que criam conduzi-los.

Antes que alguém me acuse de dizer que ter fé é uma crença vazia, explico. Ao dizer "vazio", expresso aquilo que não é visível, aquilo que não detenho, que não me garante. O vazio do voo se sente e se percebe. Os olhos não comprovam mas o corpo que nele se lança o reconhece e sabe que está ali. A convicção o faz alçar o voo. Aliás, voo só pode ser feito no vazio. Não há como voar através de espaços ocupados por qualquer coisa que possa ser vista ou tocada. A fé não pode ser um espaço ocupado por qualquer coisa que, em lugar de esperança, antes nos seja uma garantia. Mas alguém ainda argumentaria; mas o Espírito não é o penhor, não é a garantia de nossa esperança. Certamente, mas alguém vê o Espírito? Ele então é o nosso vazio em que nada vemos, mas em quem somos plenos de convicção.

A vida cristã não pode ser um emaranhado de certezas e de seguranças concebidas para nos criarem uma sensação de confortável letargia. Estamos o tempo todo sendo sacudidos para fora dessas gaiolas. Enxotados. Para aprendermos a viver no vazio da fé, que se fundamenta inegociável e incondicionalmente, apenas e tão somente, naquilo que eu não vejo, mas que convictamente espero.



[1] Romanos 8:24

Nessa analogia, Paulo destaca a natureza da esperança cristã, que está firmemente baseada em algo que não é visível ou tangível no momento presente, mas que é aguardado com confiança e expectativa.

 

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